domingo, 6 de março de 2016

Eu falo das casas e dos homens,


Eu tenho uma forte ligação com a casa na qual moro. 

Ela passa a ter a "minha cara" e eu me torno ela. Amo ficar em casa, amo mesmo.

Aprendi com minha Mãe as primeiras lições de como cuidar da casa, como limpar, como decorar, como ter as contas pagas.

Sonhei minha primeira casa quando tinha 18 anos. Desenhei as janelas, uma escada, sempre quis um quarto no alto, mais perto das estrelas, do céu (logo eu que hoje sofro pra subir escadas) e flores no jardim. Ficou só no papel, só na imaginação.

Minha casa só tive muitos anos mais tarde. Nela não havia escada para um andar superior, apenas degraus entre os cômodos. 

Eu pintei uma faixa com letras coloridas no quarto das crianças e uma com arabescos na sala. Era meu modo de colorir a vida, pois dias negros me rondavam a alma.

Passaram-se os dias ruins e também passei a casa adiante, saímos dela pra sempre

Sentimos saudades de histórias vividas lá, de alguns vizinhos, de esperanças jamais concretizadas, do tempo em que acreditei em algumas pessoas e num amor.

Hoje moramos onde os pássaros cantam ao amanhecer, temos um pé de acerola que lhes serve de ninho, abrigo e os alimenta. Nonna Maria, a vizinha, me fala: "Esses passarinhos comem muitas acerolas" e eu respondo "Não se preocupe, tem frutas o bastante pra eles e pra nós". Como eu poderia gostar do canto deles e nem comida lhes dar? O ar aqui é mais gelado, estamos mais perto da Serra do Mar. Perto da área rural de Joinville. Menos asfalto e mais verde. Que bom!



Quem adentra nesta casa logo percebe que ela é única. Tem flores de papel coladas em torno das portas, tem coleção de bules pegando pó em cima dos armários, tem paredinha de tijolos que eu e Vini adicionamos pra alargar a cozinha, tem prateleiras abertas que abrigam diversas coleções e muitas quinquilharias, às vezes retratos, às vezes louças.

Não é casa repetida, os móveis que temos aqui mais ninguém tem. São únicos, foram recolhidos ou comprados em brechós , vindos de várias cidades do Brasil, aqui aportam e tomam acento, aqui moram junto com a gente. Vão pegando o nosso jeito, vão transformando esta casa em lar.

Por isso me causa estranheza e muita tristesa lembrar das pessoas da cidade de Mariana de Minas Gerais e daquele espaço todinho tomado pela lama.

Tantas pessoinhas com suas histórias interrompidas: sem suas cozinhas onde passavam o café e coziam seus feijões. Sem os quartos que lhes abrigava o sono, os sonhos e os amores. Sem suas salas pra receber amigos, contar causos, ralhar com meninos arteiros. Sem seus quintais de roseiras, laranjeiras e as malditas ervas-daninhas. Sem as varandas dos primeiros beijos roubados, corados ou doados. Sem suas roupas domingueiras, sem a cadeira de balanço ou o banco, mesmo manco. Sem suas fotografias (chorei quando li sobre a moça que estava triste por ter perdido a única foto de sua mãe já falecida).  Sem porto, sem referência, sem endereço.

Perderam tudo. 

Ah, mas estão vivos, há quem diga. 
Sim. Estão vivos, que bom!!! Na vida tudo se reconstrói, tudo o que é bem material aos poucos a gente recupera. 

Mesmo assim é muito triste saber que essas pessoas estão ainda ao léu. 
Ainda não começaram a reescrever e a chamar de seu cantinho um pedaço desse mundão.

Encontrei na internet o poema "Eu falo das casas e dos homens" do poeta português Adolfo Vítor Casais Monteiro, escrito sobre os horrores da guerra, mas que serve pra sofrida gente de Mariana.


"Eu falo das casas e dos homens, 
dos vivos e dos mortos: 
do que passa e não volta nunca mais... 
Não me venham dizer que estava materialmente 
previsto, 
ah, não me venham com teorias! 
Eu vejo a desolação e a fome, 
as angústias sem nome, 
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas 
das vítimas. 
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima, 
uma insignificante parcela da tragédia. 
Eu, se visse, não acreditava. 
Se visse, dava em louco ou profeta, 
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada, 
- mas não acreditava! 
Olho os homens, as casas e os bichos. 
Olho num pasmo sem limites, 
e fico sem palavras, 
na dor de serem homens que fizeram tudo isto: 
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, 
esta lama de sangue e alma, 
de coisa a ser, 
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança, 
se o ódio sequer servirá para alguma coisa... 
Deixai-me chorar - e chorai! 
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, 
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama, 
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio, 
por um segundo seremos os mortos e os torturados, 
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados, 
seremos a terra podre de tanto cadáver, 
seremos o sangue das árvores, 
o ventre doloroso das casas saqueadas, 
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto... 
Eu não sei porque me caem as lágrimas, 
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim, 
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra, 
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto, 
eu que estou na minha casa sossegada, 
eu que não tenho guerra à porta, 
- eu porque tremo e soluço? 
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós? 
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros: 
as ruas são ruas com gente e automóveis, 
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis, 
e a miséria é a mesma miséria que já havia... 
E se tudo é igual aos dias antigos, 
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir, 
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente, 
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos, 
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta, 
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada..."


Foto 1: Nossa casa no Jarivatuba 
Foto 2: Nossa casa em Pirabeiraba
Foto 3: Cidade de Mariana, via internet